Publicado em 2/12/2024 as 8:00am
Como Trump reconquistou os estados-pêndulo na eleição de 2024?
Uma série de fatores são mencionados sobre o alcance da “avalanche vermelha” de Donald...
Uma série de fatores são mencionados sobre o alcance da “avalanche vermelha” de Donald Trump no resultado das urnas em 2024, entre eles, o pouco tempo de campanha que sua adversária democrata, Kamala Harris, teve para ganhar espaço e apresentar suas propostas aos americanos. Em que pesem tais ponderações, Trump soube lidar com o descontentamento sobre o custo de vida, lembrando aos eleitores, frequentemente, que a inflação não era um problema quando ele estava no comando.
Embora algumas propostas pareçam distantes da realidade prática, Wall Street demonstra estar, em grande parte, imperturbável quanto aos alertas de inflação. Os investidores creem que Trump não levará adiante seus planos de impor tarifas sobre todos os US$ 3 trilhões em importações dos EUA, ou que não conseguirá deportar milhões de trabalhadores sem documentos. Desde o dia da eleição, os investidores têm impulsionado os preços das ações de bancos, de produtores de combustíveis fósseis e de outras empresas que devem se beneficiar da preferência de Trump por impostos mais baixos e regulamentações mais brandas.
Assim, Trump remodelou o eleitorado americano, acumulando apoio entre latinos, jovens e americanos sem diploma universitário, conquistando mais votos em quase todo o país e, por fim, a Casa Branca, graças às suas propostas de proteção aos trabalhadores ante a competição econômica global. Esse posicionamento fortaleceu seu apelo entre a classe trabalhadora e entre eleitores não brancos em quase todas as regiões.
O impacto do cenário econômico nas conexões do Partido Democrata
O Acordo de Livre-Comércio da América do Norte (NAFTA, na sigla em inglês) sinalizou o afastamento do Partido Democrata de suas raízes de classe trabalhadora e do New Deal, de Franklin Delano Roosevelt. Além de estimular perdas devastadoras de empregos em fábricas em lugares como Milwaukee, Janesville e Racine, cidades de Wisconsin, o NAFTA ajudou a tornar esse estado número 1 do país em falências agrícolas, acelerando a tendência de “crescer ou sair” na agricultura. Wisconsin perdeu mais da metade de suas fazendas familiares durante o início dos anos 2000. Um caso notório deste efeito foi o da Master Lock, a icônica empresa de fechaduras de Milwaukee que terceirizou 1.000 empregos para o México logo após o então presidente Bill Clinton assinar o NAFTA. O que já havia sido alertado pelo senador Bernie Sanders, de Vermont (I-VT), afirmando que o que era bom para Wall Street poderia ser devastador para Main Street – uma referência à divisão entre o mundo financeiro e o restante da economia. Apesar da promessa de Obama aos funcionários da Master Lock de incentivar a empresa a recuperar parte dos empregos anteriormente terceirizados, anos depois, a companhia acabou transferindo todos os postos de trabalho e fechando sua fábrica em Milwaukee.
Ficou claro que a campanha de Harris direcionou esforços para atrair eleitores da classe trabalhadora nos estados cruciais do chamado “Paredão Azul” (Blue Wall, no inglês), enfatizando temas econômicos. Biden, ainda candidato, já havia visitado Wisconsin para observar o local da fábrica da Foxconn, que fora anunciada como “a Oitava Maravilha do Mundo” por Trump, mas nunca se concretizou, apesar dos bilhões investidos em recursos públicos. Biden aproveitou a visita para promover uma nova instalação de IA da Microsoft no local, prometendo 1.000 empregos — uma tentativa do Partido Democrata de recuperar apoio nessas regiões decisivas dos estados-pêndulo.
Apesar de sua retórica de representar a classe trabalhadora, Trump ampliou o déficit comercial. Além disso, com seu corte de impostos em 2017, ofereceu às corporações um incentivo adicional para terceirizar empregos, ao reduzir impostos sobre lucros obtidos no exterior. Ainda assim, ele soube capitalizar a decisão dos democratas na década de 1990 de se distanciar das demandas da classe trabalhadora e apoiar o NAFTA. Trump explora uma linguagem direta que ressoa com eleitores que se sentem abandonados.
No livro Milked: How an American Crisis Brought Together Midwestern Dairy Farmers and Mexican Immigrants (The New Press, 2022), Ruth Conniff relata algumas conversas com eleitores que disseram não votar em Hillary, porque Bill Clinton assinou o NAFTA, durante sua Presidência. Esse recorte fica claro quando se olha para Wisconsin, um estado crítico de campo de batalha. Nele, Sanders venceu as primárias democratas em 2016 por uma margem expressiva de 13 pontos sobre Hillary Clinton.
Esse cenário preocupa e abala os democratas, especialmente após Biden se autointitular o presidente mais pró-sindicato da história dos EUA, resgatar pensões sindicais e investir maciçamente em empregos industriais, mas, ainda assim, não conseguir atrair o apoio majoritário dos eleitores da classe trabalhadora que se inclinam para Donald Trump. Nesse contexto, soma-se a percepção de que o Partido Democrata é associado a um grupo de elites e a ativistas, cuja linguagem aliena os americanos da classe trabalhadora. Isso ficou evidente em uma pesquisa pós-eleitoral conduzida pelo grupo de estratégia democrática Blueprint. A sondagem revelou que o principal motivo de os eleitores indecisos não escolherem Harris era a crença de que ela estaria mais focada em questões culturais, como as questões transgênero, do que em apoiar a classe média.
O crescimento do apoio a Trump: a mobilização política e a mudança nas preferências eleitorais
Além de sua conquista de todos os swing states, o que surpreende é o percentual de americanos que o apoiaram ser maior do que o esperado, vencendo no voto popular, o que não aconteceu em sua disputa contra a ex-secretária de Estado Hillary Clinton em 2016. Além de sua conquista, a mobilização política dos republicanos foi altíssima, garantindo a maioria no Senado (53 contra 47) e na Câmara de Representantes (218 contra 209), o que favorece o apoio do Congresso às propostas de Donald Trump.
De acordo com os dados da AP VoteCast, que entrevistou 120.000 eleitores nos EUA entre 28 de outubro e 5 de novembro, Trump obteve um desempenho expressivo entre mulheres brancas, conquistando 53% dos votos contra 46% para Harris. Este grupo, que representou o maior bloco eleitoral, correspondendo a 40% do total, destaca a complexidade das dinâmicas de gênero no cenário político. Os números evidenciam como questões de gênero se entrelaçam com outros fatores, sublinhando a importância de uma análise mais ampla sobre as preferências de diferentes grupos eleitorais.
Na obra Mothers of Massive Resistance: White Women and the Politics of White Supremacy (Oxford University Press, 2018), Elizabeth Gillsepie McRae descreve como a supremacia branca permitiu que mulheres brancas não só apoiassem a segregação racial, mas também se envolvessem, ativamente, na construção de uma resistência política e cultural contra a dessegregação. Muitas participaram de organizações como a White Citizens’ Councils, além de se envolverem em campanhas contra os direitos civis, fazendo uso de suas posições como mães e figuras familiares para justificar e perpetuar ideologias racistas.
No livro Estas Verdades (Intrínseca, 2020), a historiadora Jill Lepore destaca como o senador Joseph McCarthy (1947-1957) conseguiu obter apoio significativo entre mulheres brancas, especialmente da classe média, ao explorar temas como medo, patriotismo e segurança nacional. Muitas dessas mulheres, preocupadas com a estabilidade doméstica e com a ameaça percebida do comunismo à família e aos valores tradicionais, tornaram-se uma base essencial para o movimento anticomunista liderado por McCarthy. Ele apelou a esse grupo, ao apresentar a luta contra o comunismo como uma defesa moral e nacionalista, alinhada aos papéis de gênero predominantes da época. Essa dinâmica histórica encontra ecos no apoio que Donald Trump recebeu de segmentos semelhantes.
Harris não conseguiu igualar nem superar o desempenho de Joe Biden nas eleições de 2020, quando Biden conquistou 91% dos votos entre eleitores negros, em contraste com apenas 8% para Trump. Notavelmente, Trump registrou um avanço expressivo entre homens negros, alcançando 24% de apoio nesse segmento. De forma mais ampla, Trump conseguiu ganhos significativos em todos os principais grupos raciais, consolidando uma tendência de expansão em sua base eleitoral. Ele recebeu uma parcela ligeiramente maior de votos entre os eleitores negros em comparação com 2016 (13% nas pesquisas de boca de urna), sendo especialmente forte entre os eleitores latinos, com uma adesão que chegou a 46%. Além disso, Trump conquistou uma maioria absoluta dos votos do grupo denominado “outros”, uma novidade histórica para o Partido Republicano.
A perda de apoio entre trabalhadores e eleitores negros nos EUA
Segundo Ritchie John Torres, um político democrata de Nova York (D-NY) membro do Conselho do 15º distrito da cidade de Nova York e primeiro candidato publicamente gay a ser eleito para um cargo legislativo no Bronx em 2013, os democratas estão perdendo apoio por se aliarem intensamente com pautas que fazem perder o contato com os eleitores da classe trabalhadora. Este cenário gera grandes preocupações dentro do partido, que observa uma perda significativa da classe operária branca, como aconteceu nas eleições recentes, e mais que se agrava com os latinos e alguns homens negros, há muito tempo uma parte essencial da base democrata, que também vão abandonando o partido. Para Pramila Jayapal (D-WA), presidente do Congressional Progressive Caucus, os democratas se tornaram um partido de elites que não sabe mais como falar com a classe trabalhadora.
A declaração do senador Bernie Sanders sublinhou com precisão sua visão de que o Partido Democrata abandonou a classe trabalhadora, e a mesma revidou. Isso mostra que há um desgaste crescente, devido à ausência de materialização de mudanças. Em 2012, 87% dos homens negros votaram no então presidente Barack Obama, na busca pela reeleição; em 2016, 82% apoiaram Hillary Clinton; e, em 2020, 79% escolheram o presidente Joe Biden, de acordo com pesquisas da NBC. Este ano, 70% disseram apoiar a vice-presidente Kamala Harris, segundo uma pesquisa recente do jornal The New York Times/Siena College. Esses números mostram como o interesse desse grupo pelo Partido Democrata começou a diminuir, uma tendência que se manteve nas últimas campanhas.
Além disso, enquanto os eleitores negros em nível nacional ainda apoiavam Harris de forma expressiva (85%), em Wisconsin o apoio a Trump entre eleitores negros mais que dobrou, passando de 8%, em 2020, para 22%, nesta eleição.
As famílias negras enfrentam os efeitos do aumento dos custos e da inflação de maneira mais intensa – com 55% indicando vulnerabilidade – do que a classe trabalhadora branca que representa 38%. Embora o desemprego entre negros tenha atingido níveis historicamente baixos durante o governo Biden, ele ainda é quase o dobro do registrado entre os brancos, alcançando 5,7% em comparação a 3,8%. Da mesma forma, apesar de a taxa de pobreza entre os negros ter alcançado um recorde em relação ao seu mínimo de 2022, essa diminuição ainda significava que quase um em cada cinco negros americanos vivia na pobreza – uma taxa quase duas vezes maior do que a dos brancos. Esse contexto reforça a percepção de que as condições materiais dessa população permanecem praticamente inalteradas. Com o aumento dos custos durante a administração Biden – em grande parte impulsionado pela inflação –, esse sentimento de estagnação se tornou ainda mais pronunciado.
Esses fatores levaram alguns eleitores a considerarem se uma alternativa, como Trump, poderia trazer resultados diferentes. Alguns homens negros indecisos no Michigan mencionam que esses elementos fizeram-nos questionar se realmente deveriam continuar apoiando os candidatos democratas. A situação se torna ainda mais complexa, se considerarmos que a pandemia deixou impactos econômicos duradouros. Embora muitos auxílios tenham sido criados para aliviar essas dificuldades, vários expiraram durante o governo Biden, após os republicanos no Congresso bloquearem a continuidade de programas como o crédito tributário infantil expandido. Isso deixou, em alguns eleitores, a impressão de que Trump merece o crédito por esses auxílios, mesmo que tenham sido aprovados por uma Câmara de maioria democrata, e apesar de os pagamentos de estímulo terem continuado sob o governo Biden.
Além disso, outros fatores contribuem para a perda de eleitores centrais, especificamente entre homens negros americanos. Entre eles estão o machismo e visões conservadoras, que os afastam das pautas da comunidade LGBTQIAPN+. Esses fatores são amplificados pela estratégia política do trumpismo, que frequentemente utiliza a desinformação. Um exemplo foi quando Trump lançou questionamentos sobre a identidade da candidata Kamala Harris, gerando polêmicas que chegaram a envolver celebridades, como Janet Jackson, ao endossar dúvidas sobre Harris ser ou não uma mulher negra.
Para o democrata latino e recém-eleito senador Ruben Gallego (D-AZ), uma grande parte de seu partido está desconectada de um grupo demográfico essencial para as eleições presidenciais futuras: os homens latinos. As pesquisas indicam que a vice-presidente Harris perdeu o apoio de muitos deste segmento para o presidente eleito Donald Trump. Isso representa um golpe significativo para a legenda, que tradicionalmente depende dessa base como parte de uma coalizão ampla. Para Gallego, os democratas precisam reformular sua abordagem em relação à imigração, sobretudo, considerando-se que os latinos no Arizona perceberam a crise migratória na fronteira, com a chegada de refugiados, como um “caos”.
Embora já houvesse sinais dessa mudança, o Partido Democrata ignorou a situação. O condado de Starr, conhecido como o “lugar mais latino da América”, localizado no sul do Texas e com uma população 97% latina, é um exemplo claro disso. Por mais de 100 anos, o condado votou de forma consistente nos democratas, mas esse apoio foi diminuindo ao longo do tempo. Em 2012, Barack Obama venceu com 86% dos votos. Quatro anos depois, Hillary Clinton, teve 79%. Em 2020, surgiram sinais de alerta para os democratas, quando 47% dos eleitores de Starr optaram por Donald Trump, mas muitos desconsideram isso como um acaso. Na eleição de 2024, Trump venceu com 58% dos votos na região.
Mudanças profundas estão fazendo milhões de latinos, assim como trabalhadores da indústria automobilística em Michigan e caminhoneiros na Pensilvânia, temerem ficar para trás em uma economia global que parece estar esvaziando cidades fronteiriças e siderúrgicas. Por décadas, os democratas confiaram na ideia de que os latinos viam os republicanos como racistas, ou hostis aos imigrantes, o que garantia altos índices de apoio entre esse grupo. Além disso, o rápido crescimento da população latina deveria assegurar aos democratas uma presença constante na Casa Branca.
No entanto, muitos latinos parecem ter perdido a confiança na capacidade dos democratas de gerir a economia, o que os levou a se aliar à coalizão de Trump, mesmo após anos em que ele acusou os imigrantes de “envenenarem o sangue do país”, entre outras declarações igualmente duras, preconceituosas e absurdas. Isso se reflete também na vitória de Trump em Iowa, onde alguns eleitores latinos disseram ter abandonado sua opção histórica de votar no Partido Democrata em favor de Trump, impulsionados pela inflação, apesar de seus discursos hostis e racistas. Se os republicanos mantiverem esse impressionante apoio entre os latinos, poderão garantir a permanência no poder por gerações. Mais de 80% dos latinos pertencem à classe trabalhadora, e o apelo de Trump em cidades com uma grande população latina se assemelha ao seu apelo em áreas industriais predominantemente brancas, como Michigan e Pensilvânia. O bilionário do setor imobiliário tem canalizado as queixas da classe trabalhadora com eficácia.
Na Pensilvânia, por exemplo, Trump se beneficiou de uma grande onda de apoio da crescente população latina. No “cinturão latino” do estado – um corredor industrial no leste que tem-se inclinado para a direita nas últimas duas eleições –, os eleitores latinos citaram a economia, especialmente a inflação, além de questões sociais, como principais razões para escolher Trump. Muitos também disseram que seus valores familiares agora se alinham mais com os do Partido Republicano. O crescimento marcante foi o aumento de 14 pontos percentuais entre os eleitores latinos. Em torno de 46% dos eleitores latinos declarados apoiaram Trump, em comparação com 32% na eleição de 2020, quando Trump perdeu para o democrata Joe Biden.
Os latinos nos EUA também tendem a ser mais jovens do que a média nacional, o que significa que muitos ainda não tiveram tempo suficiente para acumular patrimônio e foram particularmente afetados pelos problemas econômicos recentes, como alta inflação e taxas elevadas de juros para hipotecas. Trump conquistou 43% dos eleitores de 18 a 29 anos – um aumento de 7 pontos em relação a 2020. Além disso, uma parcela significativa dos latinos que optam por Trump e outras lideranças republicanas se identifica com valores conservadores, afirmando em entrevistas que são “pró-vida e pró-família”, o que contribuiu para que muitos deixassem de apoiar Kamala Harris.
É importante notar que nem todos os grupos sociais e classes econômicas podem ser agrupados de maneira simplista. Entre latinos e negros, há segmentos que se identificam mais com valores conservadores e com a polarização atual da “guerra cultural” nos Estados Unidos. A diversidade do eleitorado, portanto, não pode ser interpretada de forma superficial, como se todos os grupos tivessem afinidades políticas naturais entre si. Existem múltiplas camadas de interseção que dificultam a construção de alianças entre certos grupos, especialmente quando questões conservadoras, como a oposição aos direitos das mulheres sobre seus próprios corpos ou aos direitos civis da comunidade LGBTQIA+, entram em pauta. A afiliação a valores conservadores em algumas dessas comunidades revela divisões complexas e a necessidade de uma compreensão mais profunda das diversas perspectivas dentro do eleitorado.
Lauro Henrique Gomes Accioly Filho é pesquisador colaborador do OPEU, responsável pela área de Segurança e Tecnologia, e mestrando do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), com período “sanduíche” na American University em Washington, D.C. Contato: lauroaccioly.br@gmail.com.