Publicado em 19/02/2025 as 10:00am
Escritora que morou em Boston e é especialista em imigração brasileira nos EUA analisa desafios e incertezas dos imigrantes
A imagem de brasileiros desembarcando no aeroporto de Manaus em 24 de janeiro — algemados e...
A imagem de brasileiros desembarcando no aeroporto de Manaus em 24 de janeiro — algemados e com os pés acorrentados — chocou o país e contradisse a narrativa histórica da imigração nos Estados Unidos. Esses homens e mulheres, que retornam ao Brasil com pouco mais do que a roupa do corpo, carregam consigo histórias de medo, incerteza e humilhação. Para entender as complexidades desse fenômeno, conversamos com Teresa Sales, socióloga pernambucana e uma das maiores especialistas em imigração brasileira nos EUA.
Autora do influente livro Brasileiros longe de casa (Ed. Cortez, 1999), Sales passou anos em Boston, Massachusetts, realizando pesquisas de campo durante seu doutorado em Harvard e como pesquisadora visitante no MIT. Sua obra é referência para estudiosos da diáspora brasileira, especialmente aqueles que se estabeleceram em cidades americanas, muitos deles originários de Minas Gerais.
Hoje professora da Unicamp e ex-diretora do Cebrap, Sales reflete sobre a evolução da migração brasileira, que hoje soma cerca de 1,9 milhão de pessoas nos EUA, embora alertando para a natureza especulativa desses números.
A realidade dos voos de deportação
Desde 2019, mais de cem voos de deportação trouxeram brasileiros de volta ao país, fruto de um acordo entre as administrações Trump e Temer. Sob o governo Biden, pelo menos 6.970 brasileiros foram deportados. O voo de 24 de janeiro, no entanto, marcou um novo patamar de violação de direitos e humilhação. "Esses voos nunca são tranquilos, mas esse foi especialmente chocante", comenta Sales.
Os desafios de quantificar a imigração
Sales adverte que os números sobre a imigração brasileira nos EUA devem ser interpretados com cautela. "As fontes confiáveis para quantificar uma população majoritariamente indocumentada simplesmente não existem", explica. Ela contrasta a situação com a de Portugal, onde 500 mil brasileiros — cerca de 5% da população — residem legalmente, facilitando a coleta de dados precisos.
A evolução da política brasileira
A socióloga destaca uma mudança significativa na abordagem do governo brasileiro em relação aos imigrantes durante os anos 1990, sob a gestão de Fernando Henrique Cardoso no Ministério das Relações Exteriores. "Ele criou uma figura que não existia antes: o responsável pelas comunidades brasileiras no exterior", lembra. Esse movimento permitiu que imigrantes encontrassem apoio nos consulados, um contraste marcante com a apropriação do 7 de Setembro pelo bolsonarismo, que transformou uma data de orgulho nacional em um símbolo de divisão.
As origens da imigração brasileira
A primeira geração de imigrantes brasileiros nos EUA começou a se formar no final dos anos 1980, impulsionada pela crise econômica no Brasil — o "Triênio do Desencanto", como Sales o chama — e pela demanda por mão de obra nos Estados Unidos. Muitos chegaram com visto de turista e a intenção de trabalhar temporariamente, mas acabaram ficando. "Eles vinham para 'fazer as compras da casa', mas a casa era no Brasil", relembra Sales, citando entrevistas realizadas em Framingham, Massachusetts.
O papel das mulheres na imigração
Sales dedicou parte de sua pesquisa às mulheres brasileiras que trabalhavam como domésticas nos EUA. Elas foram pioneiras em uma "revolução silenciosa", organizando redes de indicação e criando quase que pequenos negócios de limpeza. "Elas transformaram o conceito de limpeza doméstica nos Estados Unidos", afirma. Muitas dessas mulheres ganhavam mais do que professores universitários no Brasil, um fato que surpreendeu a pesquisadora.
Religiosidade e mudanças geracionais
A religiosidade desempenhou um papel crucial na vida dos imigrantes, com a Igreja Católica servindo como ponto de apoio inicial. No entanto, Sales observa o crescimento das igrejas evangélicas, que adaptaram sua mensagem para atrair os imigrantes. "A teologia da libertação, com seu foco em caridade e solidariedade, parecia ultrapassada diante da mensagem evangélica, que incentivava o sucesso financeiro como forma de agradar a Deus", explica.
A segunda geração e o distanciamento cultural
A socióloga também analisou a segunda geração de imigrantes, notando um distanciamento crescente entre pais e filhos. Enquanto os pais mantinham fortes laços com a cultura brasileira, os jovens preferiam programas de TV e notícias americanas. "Muitos desses jovens, agora cidadãos americanos, até votaram em Trump", comenta Sales, destacando a complexidade dessa transição cultural.
Criminalização e preconceito
Sales alerta para a crescente criminalização dos imigrantes, especialmente sob a retórica de Trump. "Ele associou os latinos ao tráfico de drogas, mas não podemos ignorar que os americanos são os maiores consumidores de drogas do mundo", diz. Ela também observa que, assim como os nordestinos no Brasil, os imigrantes nos EUA ocupam os degraus mais baixos da pirâmide laboral, tornando-se alvos fáceis para discursos de ódio.
A história da imigração brasileira nos EUA é marcada por sonhos, desafios e resiliência. No entanto, o atual cenário de incerteza e hostilidade exige que a comunidade se una e lute por seus direitos. Como Sales ressalta, "a imigração não é apenas sobre números; é sobre jornadas pessoais e sonhos coletivos". E, por enquanto, esses sonhos parecem estar em suspenso.
Fonte: Da redação