Publicado em 6/01/2021 as 10:30am
Disco: “Reflections - A Soundtrack From A Movie Never Made”
Ao longo destes treze anos à frente do programa O Som Do Vinil, apresentando e pesquisando a...
Ao longo destes treze anos à frente do programa O Som Do Vinil, apresentando e pesquisando a história da música brasileira, presenciei inúmeras reflexões sobre nossa cultura e o papel de nossa profissão, a do músico, dentro dela. Nesta extensa sequência de entrevistas, que me serviu e serve de base para muita coisa, uma frase dita por Egberto Gismonti, a quem devo muito, marcou-me profundamente. Eis o que mestre declarou: “Antes de aprender a tocar bem seu instrumento, o músico deve, antes de mais nada, aprender a tocar a vida”.
A observação de Gismonti, multifacetada e interdisciplinar, chama a atenção por tratar de um dos maiores desafios para nós, músicos, diante de um processo no qual escolas e universidades brasileiras de música não nos preparam devidamente. Para conquistar o direito de viver de música, seja como for, é necessário foco, paciência, discernimento, sensibilidade, criatividade, curiosidade, perseverança, habilidade, coração e mente abertos, além de talento, claro. Como sempre, Egberto nos alerta e nos inspira, assim como a totalidade de sua obra.
Bem, diria que o canceriano Sallaberry, baterista, compositor e produtor musical, é um interessante exemplo desta reflexão quando consideramos o que o paulistano realizou desde que iniciou sua carreira em 1978, tocando em bandas na cena alternativa do rock de São Paulo. De lá pra cá, movido por paixão, comprometimento e um raro senso de empreendedorismo em nosso segmento, Sallaberry concretizou muito. Em 1988, editou e publicou a ECO, revista especializada sobre bateria e percussão (este que vos fala está presente na primeira edição). ECO era um espaço vital para profissionais e amadores da comunidade artística — trazia material didático, notícias, informações e entrevistas com grandes nomes da música pop, rock e jazz como Tony Williams, Gerry Brown e Max Roach, dentre outros.
Em 2002, já pensando no desenvolvimento e na viabilização de sua discografia enquanto artista solo, Sallaberry desenvolveu o “E-rec”, ferramenta de produção fonográfica que utilizava a internet como via para troca e utilização de arquivos de áudio, um dispositivo que estava à frente de sua época, possibilitando gravar com qualquer pessoa que estivesse em qualquer lugar do planeta. Não tardou muito para que seus álbuns solos, ancorados no espírito solidário da coletividade percussiva, fossem produzidos com os benefícios do “E-rec”.
Em 2005 chega o primeiro disco, “Sambasong & Friends” (2005), focado no universo da música brasileira. Na sequência vieram “Samba Soft”(2007), “Sambatuque” (2009), “New Bossa” (2011), “Rhythmist" (2013), "Move Out" (2015), "Origem" (2017) e ” Rhythm Of The Spirits” (2019). Nessa jornada discográfica, Sallaberry contou com a colaboração e participação de gente peso da cena instrumental brasileira e do jazz como Airto Moreira, Robertinho Silva, Júlio “Chumbinho” Herrlein, Billy Cobham, Dennis Chambers, Sandro Haick, Arismar do Espirito Santo, Itamar Collaço, Andreas Kisser e muitos outros.
Mas não é só: em 2009, escreveu e lançou o Manual Prático de Produção Musical (adotado em faculdades e cursos técnicos), publicação pioneira sobre o tema no Brasil. E no ano do confinamento social, 2020, um dos mais difíceis para todos os músicos do planeta, criou e desenvolveu o aplicativo Sallaberry Experience, um play along para ser utilizado remotamente para estudo e prática de bateria.
Para o início de 2021, Salaberry prossegue sua empreitada discográfica lançando “Reflections — A Soundtrack From A Movie Never Made”, seu novo álbum, o nono trabalho com obras inéditas, gravado, mixado e produzido por ele mesmo durante o ano de 2020, com a participação de vários músicos, sendo que alguns deles acabaram tornando-se parceiros nas composições. O próprio Sallaberry relata como foi o processo: “Reflections” foi o disco mais desafiador que fiz por vários motivos: gravei muitas vozes (vocalizações), além da bateria e percussões. Comecei também, dentro de meus limites, a fazer inserções melódicas no piano. Ao final das gravações, decidi que iria mixar o disco. Para isso, me equipei, li livros e assisti aulas sobre o assunto, busquei base técnica. Algumas faixas foram mixadas mais de dez vezes. O disco é meu porque sou o produtor, porém, ali estão vinte e dois músicos tocando comigo. Então, o disco é deles também, ou seja, somos uma banda de vinte e três músicos. Isso é o Reflections”. Sua habilidade em reunir um elenco tão diversificado de músicos compositores, num período complicadíssimo de nossa história, é louvável, para dizermos o mínimo.
“A Soundtrack From A Movie Never Made”, o ótimo subtítulo do álbum nos provoca uma tarefa interessante: qual filme que ainda não foi feito, se encaixaria nas onze faixas? Geralmente o filme sempre começa a ser produzido antes de sua trilha sonora. Mas Sallaberry dá deixas para que cada ouvinte monte a sua lista de cenas — o nome de cada faixa pode servir como sugestão. E porque não? “Copacabana Beach”, por exemplo, uma bossa nova elegante, com mais latinidade que de costume — lembra o cotidiano de quem vive no Rio de Janeiro, onde aquele turista nos visita na esperança de realizar suas fantasias amorosas, perambulando à noite pelas calçadas do bairro. “Diamantina”, faixa que dialoga com sonoridades orientais, funcionaria bem em lugar nos arredores da belíssima cidade histórica de Minas Gerais. Já “Until Last Night”, arranjada em clima cool jazz, conduzida pelas melodias de Jean Trompete, poderia ser a atmosfera de uma madrugada fria, numa caminhada reflexiva pelas ruas da Lower Manhattan.
A sonoridade de “Reflections” nos remete, em alguns momentos, à linguagem dos discos lançados do selo alemão ECM, um dos mais importantes e respeitados do mundo na esfera da música instrumental. Isso acontece da forma mais simples e direta em “Reflections” com o devido respeito aos timbres originais de cada instrumento gravado e reproduzido, sem as trucagens digitais que dominam as mixagens realizadas em working stations digitais e as ferramentas que seduzem técnicos e produtores hoje em dia. Retornando à esfera meramente musical: “Latin Nights”, “Risca Faca”, “Call Me” e “Days Alone”, temas que circulam pelo território do jazz fusion contemporâneo, atuam como base para que os músicos convidados explorem seus atributos como instrumentistas e compositores. Sallaberry aproveita e lança mão de suas virtudes como estudioso baterista e ritmista que é, incorporando técnicas diversas no seu principal instrumento e também na percussão, onde ficam aparentes suas influências — Airto Moreira e Naná Vasconcelos não seriam algumas delas? Ouça “Rabo de Arraia” e tire suas conclusões.
Mixando no Big Orange Studio, seu espaço de criação em Orlando, Flórida, Sallaberry ponderou: “a Flórida é um estado com influência de muitos povos — latinos, asiáticos e do oriente médio. Vivendo aqui, é inevitável que a minha música transpareça essas influências, embora os ritmos brasileiros continuem sendo a minha principal”.
Em última análise, “Reflections — A Soundtrack From A Movie Never Made”, é um trabalho que só foi possível de ser concebido, por conta da combinação das capacidades de seu principal criador, Sallaberry, com a amizade e colaboração de seus vinte e dois parceiros. Que venha a turnê do disco — estamos aguardando! Charles Gavin
Charles Gavin
É baterista e integrou o grupo Titãs de 1985 a 2010. Desde 3 de setembro de 2019 apresenta o programa Cidade do Rock, na Rádio Cidade FM, no Rio de Janeiro.
Lançou em 2008, em colaboração com Tárik de Souza, Carlos Calado e Arthur Dapieve o livro 300 Discos Importantes da Música Brasileira, edição de luxo que registra os melhores e mais marcantes lançamentos da música brasileira de 1929 até 2007.
Em 2011, Charles se juntou a Toni Platão, Dado Villa-Lobos e Dé Palmeira para formar o supergrupo Panamericana, que toca sucessos do rock sul-americano. Foi a primeira vez que estreou uma banda, uma vez que entrou em todas as outras já depois do início das atividades.
Em 2017, juntou-se a Duda Brack, Paulo Rafael, Pedro Coelho e Felipe Ventura para formar o projeto Primavera dos Dentes, que se dedica a revisitar a obra dos Secos & Molhados.
Charles foi responsável pelo relançamento de discos fora de catálogo, de artistas como Tom Zé, Lady Zu e Novos Baianos, além de organizar coletâneas para algumas gravadoras, como a Warner Music (da qual os Titãs fizeram parte).
É apresentador do programa ‘O Som do Vinil’, exibido pelo Canal Brasil, produzido pela Samba Filmes, que estreou em setembro de 2007 e continua no ar até hoje.
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Fonte: Redação - Brazilian Times.