Publicado em 29/10/2022 as 8:30am
Coluna Arilda Costa: Entrevista com o Maestro João Carlos Martins que celebra 60 anos de carreira no Carnegie Hall em Novembro
“Vou celebrar os 60 anos de minha estreia no Carnegie Hall. Que loucura! Como estou velho,...
“Vou celebrar os 60 anos de minha estreia no Carnegie Hall. Que loucura! Como estou velho, meu Deus!
Contando todos os casos de NY, eu acho que foram mais de 40 apresentações na cidade, desde o início da minha carreira, no Carnegie Hall, Lincoln Center, Metropolitan Museum, Brooklyn College, Queens College. Os dois maiores artistas brasileiros que se apresentaram, não só nos Estados Unidos, como em NY, foram Guiomar Novaes e eu. E eu, com todos os problemas que você conhece, 25 cirurgias, uma doença rara.
Aliás, a OMS vai mudar o local da conferência de imprensa sobre a Distonia Focal para um espaço maior. A conferência, no dia 18 de novembro, um dia antes do concerto, será sobre esta doença rara, reconhecida somente em 1982, e eu tenho isso há 64 anos, convivendo com a dor e o desconforto nos braços, e foi por isso que a New Yorker me chamou de ‘musical heroe’.”
Assim começou nossa conversa com o maestro João Carlos Martins, que regerá a orquestra NOVUS NY em um concerto comemorativo de sua estreia no mesmo palco há 60 anos, no dia 19 de novembro.
Embora tenha voltado ao palco do Carnegie Hall diversas vezes, qual é o sentimento desta apresentação em comemoração aos 60 anos de sua estreia no mesmo palco?
A sensação é uma sensação que eu aprendi na primeira vez que eu toquei no Carnegie Hall. Nesta primeira vez foi a Eleanor Roosevelt, que tinha assistido um concerto meu em Washington, e me convidou para ser a sponsor da minha estreia em NY. E eu estava assim, na hora de entrar no palco, eu pensei: a missão de um artista é procurar, no final do concerto, tirar uma lágrima do público e um sorriso nos lábios. E este foi o primeiro pensamento que me veio à cabeça, em 1962.
Na minha vida eu realizei cerca de 4 mil apresentações, das quais 1,5 mil, 1,8 mil como pianista, e umas duas mil e tantas como maestro, já. Então, toda vez que eu entro em palco, a sensação é esta, a minha missão é procurar perfeccionismo transmitindo emoção. E essa vai ser esta minha sensação no dia 19 de novembro. Claro que é uma emoção, porque, aos 82 anos, você tem projetos para os próximos 20, é porque você acredita na vida.
Como surgiu a ideia de convidar a NOVUS NY para este concerto?
É porque, desta vez, depois da pandemia, ficou complicado levar minha própria orquestra [a Bachiana Filarmônica SESI-SP]. Como a NOVUS NY (inaudível)... Já foram enviadas as partituras e vamos ter três ensaios, nos dias que antecedem o concerto. São músicos de primeira linha e tudo funciona como mágica. Essa é minha esperança. Eu ainda não conheço a orquestra, mas sei que é espetacular.
O repertório traz peças de Bach, Heitor Villa-Lobos e André Mehmari. Quais foram seus critérios para essa escolha? O público pode aguardar alguma surpresa?
Bem, porque, para você ter uma ideia, com todos os acidentes – eu tive dois acidentes periféricos, uma lesão no nervo ulnar, jogando futebol [no Central Park] e um assalto na Bulgária, que me deu uma lesão cerebral que me deixou vários meses em tratamento no Jackson Memorial Hospital, em Miami - fora a distonia focal, que me persegue há 64 anos, a escolha tinha que ser mais eu e minha vida. Eu dei mais de 500 concertos tocando a obra de Bach, de quem gravei a obra completa para teclado, como pianista. Então, a primeira parte tinha que ser Bach. A segunda parte tinha que ser um compositor que se inspirou em Bach, Villa-Lobos, por isso um Prelúdio das Bachianas Brasileiras. E, finalmente, o André Mehmari. A Fundação Bachiana [criada e dirigida por Martins] encomendou para ele uma Suíte baseada na origem do folclore brasileiro. Então, uma Suíte orquestral onde, pelo caminho você vai reconhecer “Marcha soldado, cabeça de papel”, e outras peças, no meio. E o André Mehmari, sem dúvida alguma, é o sucessor do Villa-Lobos no Brasil. E aí vai entrar o piano e, com as luvas biônicas, eu quero tocar três peças. Mas ainda não sei, por causa da distonia, que ainda não tem cura, pode ser que as mãos estejam muito cansadas no final. Mas duas peças eu garanto, vou tocar o Cine Paradiso, do Morricone, uma peça de Schumann e, se as mãos permitirem – pois vai contraindo a mão por causa da distimia - , depois de reger o concerto, a minha ideia é dar o mesmo bis que dei há 60 anos atrás, com todas minhas limitações.
O público certamente pode aguardar surpresas...
O que acontece é que o piano só vai entrar no palco – não está no programa a entrada do piano – quando eu acabar de reger o pessoal de backstage vai levar o piano para o palco, um surpresa e aí com as luvas biônicas – que saiu no mundo inteiro. O importante é que na sua vida, você pode ter erros e acertos. Os erros você procura corrigir e os acertos, aprimorar. Eu diria para você, que nestes últimos 20 anos, eu procurei muito aprimorar os acertos e assumindo uma posição, em nosso país, chamada responsabilidade social. Na minha opinião, eu não faço jamais uma declaração política, a única coisa que faço, eu uso a famosa frase de John Kennedy: “Não é o que o país pode fazer por você, é o que você pode fazer pelo seu país”. Se cada um fizer a sua parte, a nação vai crescer. Esta é a minha opinião. E estou fazendo o meu trabalho de responsabilidade social [o maestro mantém projetos de musicalização junto a jovens em situação de vulnerabilidade social no estado de São Paulo].
Quando eu comecei minha vida como maestro, começamos a realizar concertos na Sala São Paulo e no Theatro Municipal e quisemos fazer um trabalho de democratização com a música clássica. Muitas pessoas falavam que o público diria “na Sala São Paulo, que roupa que eu uso”, que não tinham familiaridade com a música clássica. Então, com a minha campanha de democratização com a Bachiana Filarmônica SESI-SP, alcançamos 17 milhões de pessoas ao vivo. E nas lives, durante a pandemia, 3 milhões de pessoas. O que acontece é que, realmente, o meu público em Nova York, é metade brasileiro e metade norte-americano, mas são brasileiros as vezes que não tem tanta familiaridade com a música clássica. Mas o Carnegie Hall é um lugar onde a cultura é um direito de todos os segmentos da sociedade.
No dia anterior ao concerto o senhor fará uma conferência na OMS sobre a Distonia Focal. Fale mais sobre sua relação com a doença e qual o objetivo desta conferência.
Vários cientistas virão para esta conferência, do Japão, da Coreia do Sul, da Austrália, da Alemanha, e vou me dedicar muito à campanha sobre o que significa na vida de uma pessoa – você não imagina o número de suicídios de pessoas que tem distonia focal. No começo os médicos pensavam que podia ser um problema psicológico, e eu sabia que não era. Mas foi finalmente descoberta como doença rara, em 1982, e agora estou no board da principal organização do mundo de distonia – tem várias fundações no mundo inteiro. Inclusive soube que cientistas da Coreia do Sul publicaram um artigo de 17 páginas na revista Science, depois de um ano de pesquisas.
Eu fiz, inclusive, uma operação no cérebro, de nove horas, com o Dr. Paulo Niemeyer [neurocirurgião brasileiro], mas até hoje não existe uma cura para a distonia focal, que é uma prima do Mal de Parkinson. Na hora em que descobrirem a cura da distonia ou do Mal de Parkinson, uma vai atrás da outra. Mas eu aprendi a driblar o cérebro, fiz diversas cirurgias, até que os médicos falaram que eu nunca mais poderia tocar profissionalmente. No dia seguinte tomei a primeira aula de regência. Aos 63 anos comecei uma nova vida, estou aí com 82 e com muita energia, dando cerca de 140 concertos por ano. Imagine você!
O senhor costuma dizer que a ciência cura o corpo, a cultura cura a alma. Qual a importância da cultura na formação de um cidadão?
A cultura é de tal importância para a formação de um cidadão e, como costumo dizer, em um país, uma nação, todos os aspectos físicos têm que ser tratados, a educação, a saúde, o health care, tudo tem que ser tratado com amor. Só que a cultura é a alma de uma nação, é encarregada de cuidar da alma de uma nação. Então, a missão de um artista é muito forte, porque ele faz parte daquele time que está cuidando da alma de uma nação. É esse o papel.
Eu falo que a ciência cura o corpo, porque afinal de contas foram 25 cirurgias para manter o meu sonho, e a arte cura a alma. Essa foi a frase usada na exposição sobre a minha vida, uma exposição de mil metros quadrados [no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo], no ano passado, que teve como título: “A ciência cura o corpo, a cultura cura a alma”. Aliás, eu fiz uma postagem no Instagram [@maestrojoaocarlosmartins] e a Viola Davis fez um comentário bárbaro, a Charlize Theron, vários artistas comentaram. A música clássica tem poucos seguidores, são 15, 20 mil. Foi o Alexandre Nero [ator brasileiro] quem me convenceu. Eu nem sabia o que era Insta, sou tão antiquado que nem sabia o que queria dizer. E há três anos comecei. São pouco seguidores, mas entre Instagram e Facebook são quase 700 mil seguidores. E nesta postagem que a Viola fez, onde ela falou “não desista”, repercutiu no mundo inteiro, com 33 milhões de visualizações. Foi a primeira vez que toquei com as luvas. Foi o que o Alexandre Nero falou para mim que através da internet você ajuda a democratizar a música clássica. E nesta postagem de um minuto estou tocando uma peça de Bach!
Depois de Nova York, o senhor tem outros concertos programados aqui?
Volto para São Paulo, onde tenho um concerto, e depois vou a Xangai, onde vou celebrar os 20 anos do meu último concerto como pianista profissional, na China.
Deixe uma mensagem para a comunidade brasileira Estados Unidos:
Vão até o Carnegie Hall, porque ir ao Carnegie Hall é um direito de todos. Todos falam que é um espaço elitista e eu digo que não existe arte elitista, existe arte para todos os segmentos da sociedade.
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