Publicado em 31/05/2018 as 6:00pm
Quem é o jornalista 'assassinado' que apareceu vivo - e está no centro da disputa entre Rússia e Ucrânia
Arkady Babchenko teve sua morte forjada pelo governo ucraniano, que alega ter desbaratado um plano russo para matá-lo agindo preventivamente.
Quando a Ucrânia anunciou, na terça-feira (29), que o jornalista russo Arkady Babchenko havia sido assassinado a tiros nas escadas do prédio onde morava, em Kiev, desencadeou uma onda de comoção, protestos e tensões diplomáticas – afinal, Babchenko era conhecido por suas críticas ao Kremlin e havia se mudado para a capital ucraniana para escapar da perseguição em seu país.
Não foi pouca a surpresa, então, causada pela aparição de Babchenko em uma entrevista coletiva em Kiev menos de 24 horas depois de seu "homicídio", nesta quarta-feira (30), explicando ao público que sua própria morte foi forjada em uma tentativa de expor um suposto plano do governo russo para matá-lo.
Para completar, a morte foi forjada com a ajuda direta dos serviços de segurança da Ucrânia. Segundo informou o próprio oficial ucraniano Vasyl Hrytsak, o objetivo era flagrar o trabalho de assassinos de aluguel supostamente financiados pela Rússia.
"Graças a essa operação conseguimos frustrar um plano cínico e documentar como o serviço secreto russo planejava esse crime", disse Hrytsak aos jornalistas.
A polícia ucraniana afirmou ter detido um homem em conexão com o suposto plano.
Trata-se, também, de mais um capítulo das tensas relações entre Rússia e Ucrânia. Antes parte do bloco soviético, a Ucrânia viveu uma guerra sangrenta em anos recentes entre grupos pró-Europa e grupos aliados ao governo de Vladimir Putin, que culminou, em 2014, com a anexação russa da península da Crimeia – oficialmente parte da Ucrânia, mas com população majoritariamente de origem étnica russa.
Como o caso se desenrolou?
A notícia da "morte" de Babchenko veio a público quando sua mulher relatou ter encontrado o marido no chão da porta de entrada de seu prédio, com ferimentos de tiros nas costas. Ele "morreu" na ambulância a caminho do hospital, disse ela.
Pouco depois, o premiê ucraniano, Volodymyr Groysman, acusou a Rússia. "Tenho certeza de que a máquina totalitária russa não perdoou (Babchenko) por sua honestidade e seus princípios", afirmou.
Moscou respondeu pedindo uma investigação, mas agregando que "crimes sangrentos" se tornaram rotineiros no "regime de Kiev".
A aparição de Babchenko na entrevista coletiva desta quarta-feira provocou espanto entre os jornalistas. "Fiz o meu trabalho. Ainda estou vivo", disse ele.
Babchenko agradeceu aos serviços de segurança ucranianos por "salvarem a sua vida" de supostos assassinos a mando da Rússia e afirmou que não teve alternativa senão fingir a própria morte.
"Enterrei muitos amigos e colegas e conheço o sentimento de dor", disse.
"Sinto muito ter causado isso. Mas não havia alternativa."
A operação
Babchenko afirmou ter sido informado há cerca de um mês sobre um plano russo para matá-lo e manteve contato constante com as forças de segurança ucranianas desde então.
Segundo Hrytsak, chefe dos serviços ucranianos, o governo russo havia recrutado um cidadão ucraniano para encontrar um assassino de aluguel que aceitasse US$ 30 mil para matar Babchenko. Um dos homens abordados nessa busca teria dado a pista a Hryrsak.
Daí surgiu o plano de fingir a morte de Babchenko.
Não está claro se a mulher do jornalista, Olechka, estava ciente da farsa. Na entrevista coletiva, ele pediu desculpas a ela: "Olechka, eu sinto muitíssimo, mas não havia outra opção."
As reações
A porta-voz do Ministério das Relações Exteriores da Rússia, Maria Zakharova, afirmou que a morte forjada foi uma "farsa com objetivos propagandísticos" e se disse feliz pelo fato de o jornalista estar vivo.
O presidente ucraniano, Petro Poroshenko, por sua vez, afirmou que seu país cuidará da segurança de Babchenko. "É improvável que Moscou descanse (de sua suposta tentativa de dar cabo do jornalista). Dei uma ordem para prover proteção a Arkady e sua família", disse no Twitter.
A rede de emissoras Radio Free Europe/Radio Liberty postou um vídeo da reação dos jornalistas ao descobrir que seu colega estava vivo:
Mas muitos expressaram reservas à tática usada pelo serviço ucranianos. A ONG Repórteres Sem Fronteiras condenou a falsa morte como uma "artimanha patética".
"É lamentável que a polícia ucraniana tenha brincado com a verdade, por qualquer que seja o motivo", disse Christophe Deloire, chefe da ONG, à agência France Presse.
E o Comitê de Proteção a Jornalistas exigiu que as autoridades ucranianas expliquem "o que exigiu essa medida extrema".
Contra o Kremlin
Babchenko é um dos mais conhecidos jornalistas críticos do governo de Putin. Ele concorreu em eleições não oficiais organizadas pela oposição em 2012 e criticou a participação de tropas russas em conflitos na Síria e no leste da Ucrânia.
Em dezembro de 2016, ele escreveu um post no Facebook a respeito do avião militar Tu-154, que afundou no mar a caminho da Síria, carregando militares russos e jornalistas de emissoras pró-Kremlin. "Não tenho pena ou simpatia (pelos mortos no acidente)", disse ele no post. "Não expresso condolências a seus entes queridos."
A postagem gerou forte reação na Rússia. Babchenko disse ter recebido ameaças de morte e decidiu deixar seu país. Mudou-se para a Ucrânia no ano seguinte.
Babchenko também escreveu para a BBC, relatando o caso de um helicóptero do Exército ucraniano que fora derrubado no leste do país em 2014.
Kiev tem registrado, nos últimos anos, um aumento no número de atentados fatais contra personalidades como políticos e jornalistas. Na maioria dos casos, as vítimas eram contrárias ao Kremlin.
Um exemplo é o do jornalista bielorusso Pavel Sheremet, crítico de Putin, que foi morto por uma bomba colocada dentro de seu carro na capital ucraniana, em julho de 2016.
Outra explosão de carro matou o oficial de inteligência ucraniano coronel Maxim Shapoval, em junho de 2017, em ato considerado "terrorista" pelas autoridades ucranianas.
Em março do ano passado, o ex-parlamentar russo Denis Voronenkov foi alvejado a tiros na saída de um hotel em Kiev.
Fonte: BBC